quinta-feira, 2 de junho de 2022

MEMÓRIA DE UM PAI SEMPRE PRESENTE : A NOSSA MENINA




"A Minha Menina"
Quadro inspirado no "Rapariga do Brinco" de Vermeer


Desde que o pintei, este é o quadro com mais significado para mim __ " A  Minha Menina". Tanto assim que, como costumo dizer, é a única coisa material que faço questão que me acompanhe até ao fim dos meus dias, neste planeta e onde quer que esteja.

O tempo passou, correu para todos e para um pai que adorei, pelo homem que foi... tanto nas suas mais variadas facetas como pelo seu especial sentido de humor.

Todos os Sábados, em que almoçávamos todos juntos, chegava a altura de se levantar depois de ter acabado a sobremesa e de fazer o seu cafézinho de uma forma tão especial. Pouco depois, ainda que nós outros pudéssemos permanecer à mesa na conversa, levantava-se do seu lugar ao lado do meu, apertava-me o ombro em sinal de carinho, dirigia-se para a porta da sala e, em jeito de saudação, dizia: __"Sois muito boas pessoas, mas agora está na hora de ir meditar". E saía, com um aceno amigável, no seu passo tranquilo e tão peculiar, para se dirigir ao seu cadeirão no escritório onde fazia a sua sesta com o lenço a tapar-lhe os olhos por causa da luz do dia e a sua manta sobre os joelhos em dias de frio no Inverno..    




Tal como às vezes acontecia, ia ter com ele ao escritório, e foi o que aconteceu naquele dia. Estava recostado no seu cadeirão e disse-me: __" Também tenho a minha menina..." Fiquei sem perceber. É, então, que aponta para o canto da parede em frente, e me surpreendo com o retrato de cabeça de índia que tinha feito muitos anos atrás e que lhe tinha oferecido. Quantas vezes, tinha visto aquela cabeça de mulher com a pele curtida pelo Sol e um olhar distante sorrindo para o infinito. A partir daí, passou a ter um significado maior. Já não era só um desenho que tinha feito para oferecer a uma pai céptico quanto às minhas capacidades para o Desenho e Pintura (.desenho esse que tinha saído "bem", para a idade e aprendizagens que eram poucas ou nenhumas). A partir daquele dia a "menina do meu pai" tornou-se especial, também para mim.



De seguida, o meu pai no seu jeito de brincadeira, diz-me:__" Sabes, filha?!... Eu também tenho uma menina. Só que esta está a rir-se de mim..." Pergunto: __" Como assim?" Responde-me: __" Ri-se de mim, quando digo que venho meditar aqui para o meu cadeirão..." A verdade é que o acompanhou até ao fim dos seus dias. Hoje, quando o vou "visitar" ao escritório, o cadeirão está vazio, com a mantinha bem dobrada em cima, tal como acontecia antes da sua partida, e onde os gatos ainda se deitam quando apanham a porta aberta..


Na parede, no lugar da sua menina, alguém pôs o primeiro quadro que pintei sozinha a espátula e que também lho tinha oferecido. Quadro este que no dia de hoje, passou a ter o título de "Livre Arbítrio". Nele, a água em cascata segue diversos caminhos entre os rochedos da encosta em que cada um deles continua o seu percurso. Todos nós teremos que seguir o nosso caminho com mais ou menos hesitação ou a determinação de um caminho traçado com algum propósito em que muitas vezes cabe-nos a nós escolher que rumo tomar. 


*****


Hoje, tenho a "sua menina" no meu escritório onde, com ar sonhador, o continua a acompanhar onde quer que esteja e, a mim também, no meu dia a dia terreno. Foi o principal legado que o meu pai me deixou. Hoje, passei a ter duas meninas. Para além da minha menina do brinco de pérola, que costumo dizer que "recebe quem vem e acompanha quem fica", tenho a menina do meu pai que enigmaticamente nos continuará a acompanhar enquanto continuarmos a nossa viagem tranquilamente e em direcção ao nosso destino final. Ambas nos inspiram Fé e confiança naquilo que parece ser uma certeza. Quando as dúvidas são muitas, tranquilizam-me com aquele ar confiante, sorridente e/ou introspectivo.





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